Jan Duarte
Embora eu tenha praticamente desistido de participar de listas de discussão sobre neopaganismo e outros temas ligados de alguma forma ao esoterismo, uma vez ou outra ainda surgem no meu email algumas mensagens bastante características, que me mantém a par das – digamos assim – últimas tendências. Bem, vou reformular a frase: eles me mantêm a par das tendências, uma vez que estas não são exatamente novas e acabam confirmando uma série de considerações que venho fazendo há um bom tempo.
Na verdade, descobri que não se pode traçar um panorama coerente do neopaganismo no Brasil a partir das elucubrações dos estudiosos do assunto – como eu mesmo, aliás. O arrazoado dos estudiosos acaba se perdendo num palavrório que não reflete o arrazoado dos praticantes. Ocorre, nesse caso, um processo de dissociação semelhante ao que pudemos constatar, recentemente, no nosso Congresso, entre a “opinião pública” e a “vontade popular”. A “opinião pública” é feita por uma minoria que escreve em jornais, ao passo que a “vontade popular” não está nem aí...
Mas passemos a um caso concreto e voltemos ao foco, já que essa dissociação pode perfeitamente ser tema de um outro artigo. Há alguns dias, tive a oportunidade de ler um email bem interessante. Nele, uma jovem wiccana começava por fazer uma clara associação entre a Deusa e a Natureza, ressaltando que isso não reside nos livros e nos autores (na opinião pública?), mas sim no fato que ela é a criadora de tudo. Prosseguia relatando o fundamento de sua crença: ela precisou da ajuda da Deusa numa determinada questão (judicial), direcionou seus pensamentos, foi abençoada por Ela e, compreensível e inelutavelmente, venceu sob a benção da Deusa.
O testemunho de nossa jovem amiga é irrepreensível. A ela não importa se, no caso em questão, ela tinha ou não razão, se a vitória era certa, se o sistema judiciário do país funciona ou não. Ao se sentir ameaçada nos seus direitos, sem razão para confiar na justiça humana, ela apelou para a Deusa, e obteve aquilo que desejava. Talvez, se eu tivesse feito a mesma coisa, mais alguns deputados tivessem sido cassados, mas pelo visto a Deusa está muito ocupada com situações individuais e não tem tempo de fazer justiça numa escala global, ainda mais em um país cristão.
Ah! Um país cristão... Chegamos ao cerne da questão. Num país onde a constituição separa religião e Estado, mas os plenários das cortes têm crucifixos pendurados atrás das mesas diretoras, e onde uma substancial maioria das pessoas se autodefine como tendo uma determinada religião, mas não sendo praticante, algumas incoerências são perfeitamente aceitáveis. Vamos então olhar, parte a parte, o email de nossa amiga.
Primeiro, a parte perfeitamente aceitável como pagã: a deusa é uma expressão da natureza, uma divindade ctônica e imanente. O paradoxo de ser criadora de tudo e ser, ela mesma, não-criada, estão convenientemente presente em muitas religiões pagãs. A antiqüíssima Gaia dos pré-gregos já tinha essa característica, e foi preciso inventar Cronos, o Tempo – muito tempo depois – para separá-la de Urano, o céu estrelado.
Mas o paganismo da mensagem acaba por aí. Judeus e depois cristãos fizeram questão absoluta de deixar essa deusa da terra, da natureza, por baixo... Deus ficou por cima, nessa relação bem papai-e-mamãe, e ocupou as regiões do céu, enquanto aqui embaixo ficou o que não prestava. Nossa amiga, que reconhece o fato da Deusa ser a natureza, olha para o céu, no entanto, para encontrar o apoio divino que precisava.
Um breve parêntese... Antes da jovem mudar o foco de seu discurso da terra para o céu, surge o fato. O fato que não está nos livros nem na opinião dos estudiosos. Fica claro que o fato, na opinião de nossa colaboradora acidental, reside na fé. Ela acredita que a Deusa é isso e aquilo, apesar das opiniões que possam ser contrárias, por mais embasadas que sejam. Mas voltaremos a esse ponto depois. Olhando para o céu, nossa amiga vê a Deusa. Aquela mesma que ainda há pouco estava aqui embaixo, na natureza. Então ela direciona seu pensamento, ou seja: ela reza.
Reza para a Deusa que está lá no céu para que ela lhe ajude na sua questão judicial, aqui embaixo. Talvez faça uma tradução literal, do tipo “mãe nossa que estás no céu” para obter a Sua benção, e é finalmente atendida. Aquilo que era improvável se tornou provável. Ou aquilo que era provável se tornou improvável para ser revertido sob o signo divino. Ela venceu sob a benção da Deusa! Incoerente?
Claro que não! Perfeitamente coerente, uma vez que o que temos aqui é o retrato de um certo paganismo nacional, que nada mais é do que um catolicismo travestido. E nisso eu não estou fazendo nenhum tipo de crítica, ou querendo invalidar a crença de ninguém. Acho até bonito as pessoas acharem que não precisam tomar conta das próprias vidas e se entregarem de corpo e alma a uma divindade que eles supõem que exista. Isso é uma prova de abnegação que eu não seria capaz de dar. Só não consigo entender porque insistir em chamar de “paganismo” uma fé religiosa que se baseia na adoração de uma divindade personificada, milagreira, à qual se dirigem orações em busca de “bênçãos” e “graças” individuais.
O cerne do paganismo consiste na aceitação dos próprios atos e de suas conseqüências. Pagãos – sejam eles celtas imaginários, ou índios brasileiros bem reais – voltam-se para os seus deuses em busca do que não puderam prever, e não em busca da mudança do previsível. Sua magia e suas orações se direcionam a evitar a tempestade que não pode ser prevista ou a protegê-los da ira do inimigo que pode enfeitiçá-lo, mas não ao que pode ser resolvido pelos parâmetros legais, culturais ou convencionais do dia-a-dia.
Nenhum índio ora aos deuses para que lhe proteja da preguiça que lhe fez não cultivar a sua lavoura...
O email da nossa amiga involuntária não difere do discurso das igrejas evangélicas, que é tão criticado. Ela nega o raciocínio, o conhecimento, a elucubração com bases lógicas e científicas, em prol de um fato que se baseia apenas na fé. Esse fato não pode ser negado, uma vez que deriva do sentimento, é o resultado empírico de uma falácia. Ela transmuta a sua divindade onipresente em um deus localizado, que está disposto a lhe fazer as vontades, a “derramar sua bênção”, independentemente dela estar certa ou errada. Ela confia nesse deus (ou deusa) serviçal, nesse hedonista cósmico que tudo faz para quem lhe agrada, e para quem a noção de fidelidade significa mais do que a noção de justiça. Ela acredita ter sido escolhida, pois agradou à Deusa, exatamente da mesma forma que católicos e evangélicos se acham, cada um por seu turno, escolhidos por bajularem o seu Deus. Enquanto no paganismo “real” os objetivos do culto são coletivos, nesse simulacro pagão moldado no cristianismo e impregnado dos valores da
sociedade de consumo, os objetivos são total e completamente ndividualistas. Essa é a síndrome do paganismo cristão. Os “abençoados da Deusa” são iguaizinhos aos “abençoados pelo Senhor Jesus”, com a única diferença que buscam vestir saias naquele que, se existiu, morreu pelado. Se o incrível Jesus - o único judeu louro de olhos azuis - na sua agonia, disse “perdoa-os, pois não sabem o que fazem”, a incrível e tremendamente terrena Diana, de olhos verdes de gazela e natureza, daria uma grande risada e diria: “esquece-os, eles não sabem nem em que terreno pisam”.
Texto retirado de:
http://www.janduarte.com.br/artigos/paganismo_cristao.pdf
http://www.janduarte.com.br/artigos/paganismo_cristao.pdf
Opinião:
Uma visão no mínimo interessante, há muito o que pensar a respeito deste assunto!
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Uma visão no mínimo interessante, há muito o que pensar a respeito deste assunto!
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